A denúncia é feita por um grupo de docentes ultrapassados no concurso que agora pedem que seja dada prioridade a quem tem experiência na área. A solução, contudo, não é pacífica.
“Este ano foi o descalabro e temos mesmo de nos mexer” – é assim que Sofia Barcelos explica o afã de meia dúzia de professores que, em poucos dias, escreveram uma carta aberta ao ministro da Educação, Nuno Crato; criaram
uma página no Facebook; lançaram
uma petição e pediram audiências às mais diversas instituições para as sensibilizar para o problema. “Um exemplo” – aponta a docente – “um professor contratado que dê aulas de História ou de Educação Visual Tecnológica (EVT) há sete anos e que tenha feito agora uma pós-graduação em EE, passa à frente de uma pessoa que seja professora de EE há seis anos. Não é admissível”, insurge-se.
A situação não é nova: verifica-se desde 2009. E os números mostram por que Sofia Barcelos fala em “descalabro”. Quando aquele grupo de recrutamento foi criado, há seis anos (na sequência do processo anterior de inclusão das crianças como NEE nas escolas públicas) não havia profissionais qualificados em quantidade suficiente. Uma situação que mudou de forma drástica: 2010 houve 1556 candidatos, no ano seguinte fizeram parte das listas 2977 e, este ano, a lista definitiva de ordenação naquele grupo de recrutamento de docentes já tinha 4615 nomes. Todos eles com licenciaturas noutras áreas e especializações em EE, já que não existe formação de base.
O que aconteceu para o trabalho com crianças com NEE se tornar tão atractivo? “O aumento do desemprego dos professores contratados que legitimamente procuram trabalho. E o facto de o Ministério da Educação e Ciência não aplicar a lei”, responde João Paulo Silva, da Federação Nacional dos Professores (Fenprof). Segundo explica, nos restantes grupos de recrutamento o tempo de serviço é contado de forma diferente antes e após a profissionalização, para efeitos de ordenamento nas listas. A Fenprof defende que o mesmo tem de ser aplicado neste caso, tendo como referência o momento da especialização em EE: meio valor para o tempo de serviço anterior àquela e um para o prestado depois.
O grupo de Sofia Barcelos, no entanto, pretende mais do que isso: quer que quem tem experiência tenha prioridade sobre todos os outros (na linha do que aconteceu entre 2006 e 2009). Argumenta que “não se trata de uma questão meramente laboral, mas de garantir os direitos dos alunos”. “Este trabalho é especial, requer uma avaliação pedagógica, observação de comportamentos e de funcionalidade apurada, conhecimento aprofundado de diversa legislação, elaboração de documentos específicos e experiência de ensino com alunos de diversos diagnósticos clínicos”, pode ler-se, na carta aberta dirigida ao ministro.
Professores sem experiênciaLaurinda Coelho de 39 anos, residente em Évora é uma das professoras que trabalhava há quatro anos com o mesmo grupo de seis crianças com multideficiência e défice cognitivo severo. Conta que durante este período fez mestrado na área do sistema aumentativo de comunicação (através de símbolos) já que “apenas uma das crianças possuía linguagem natural e, mesmo assim, rudimentar”. Este ano, essas mesmas crianças ficaram com duas professoras, uma de 1.º ciclo e outra de EVT, sem qualquer experiência em EE. “E eu, que investi na minha formação, estou em casa, desempregada. Faz sentido?”, pergunta.
“Não faz”, concorda José Alberto Rodrigues, presidente da Associação de Professores de EVT. Diz que tem “de admitir que aquelas são crianças especiais, com NEE, e que a experiência dos docentes naquela área específica é valiosa”. Mas não condena os professores que ocuparam esses lugares: “É dramática a situação em que o MEC colocou os professores contratados. As pessoas precisam de trabalhar, é natural e legítimo que aproveitem todas as oportunidades”, avalia, quando contactado pelo PÚBLICO. Abel Ribeiro reage com indignação. Com 37 anos de idade e nove de serviço como professor de EVT está a cumprir o 10.º numa unidade de multideficiência “com competência”, assegura. “Tenho experiência acumulada, especialização em EE e não me sinto menos capaz do que colegas com mais experiência na área. Se o MEC criou esta possibilidade, que me obrigou a investir milhares de euros e a deslocar-me para uma cidade que fica a 500 quilómetros de casa para ter um horário anual e completo, não pode, agora, alterar as regras do jogo”, argumenta.
Maria José Salgueiro, coordenadora do grupo de EE da Confederação Nacional de Associações de Pais e Encarregados de Educação (Confap), afirma que a questão “é complexa”. Na sua perspectiva “não há uma resposta linear”. Não tem dúvidas “de que não é admissível desperdiçar a experiência das pessoas que trabalham nesta área” e que “estão a ser empurradas para fora do sistema”. Mas frisa que “a Confap recebe, muitas vezes, queixas de pais em relação a professores que optaram pela EE desde o início e que não revelam a sensibilidade necessária para lidar com as crianças”. “O ideal seria uma forma de selecção diferente”, sugere, sem adiantar qual.
O que fica mais barato? A questão pode, no entanto, não se colocar para o ano. “Não quero fazer o papel de advogado do diabo, mas fica muito mais barato ao Estado investir numa formação de meia dúzia de meses nos professores dos quadros de forma a eliminar ausências de componente lectiva e fazer face às necessidades dos grupos do EE do que contratar docentes deste grupo de recrutamento”, escreveu, quinta-feira, Arlindo Ferreira no
blogue, DeAr Lindo, que é diariamente seguido por milhares de professores.
O professor lembra, por outro lado, que “o espectro da mobilidade especial” faz com que muitos docentes dos quadros estejam já a fazer a especialização à sua custa e pretendem mudar para aquele grupo no próximo concurso, “sem pensar duas vezes”
Este ano, dos 51.209 docentes sem vínculo que se candidataram à contratação inicial e renovação de contratos, ficaram colocados, para dar aulas por um ano, em horário completo e desde o início do ano lectivo, 7600 pessoas. Menos 5147 do que no ano anterior. De entre os professores do quadro, 2763 iniciaram o ano lectivo com horário zero. É a estes que se refere Arlindo Ferreira.
O PÚBLICO pediu ao MEC, através do gabinete de imprensa, um comentário à petição feita pelo grupo de docentes de EE e às questões que este levanta, mas não obteve resposta.